terça-feira, 4 de junho de 2013

Tarô

Pegava o primeiro metrô do dia para a casa da mãe, única solução em que conseguiu pensar sendo um homem adulto e maduro, e continuava manejando incansável o baralho de tarô, retirando cartas aleatoriamente e sempre recebendo invariavelmente a mesma previsão.
Aquilo já tinha passado dos limites, e tinha começado como uma simples brincadeira. Ele e seus amigos estavam em uma dessas feiras itinerantes, que trazem para a cidade tendas de reiki, cristais, massagem dos chakras, e todo tipo de bobagem new age que se possa imaginar, e por provocação dos amigos, que sabiam que Alain era um materialista convicto para quem o sobrenatural era apenas um nome diferente para aquilo que não entendemos ainda, decidiu ir na tenda do tarô e ver o que as cartas lhe diriam.
O resultado ele já esperava. A velha decrépita que lhe atendeu no interior escuro e com o ar saturado de fumaça de incenso da tenda lhe tirou três cartas que previam alguma merda genérica que teria sido uma boa previsão para pelo menos 99% da população. “As cartas não mentem!” disse ela, como ele tinha certeza que dizia para todos os seus clientes. Pagou a consulta, satisfeito por não se ter deixado enganar pela atmosfera do lugar, e já se virava para sair e contar a experiẽncia para os amigos quando a velha lhe chamou, como se tivesse lhe ocorrido de súbito uma ideia de última hora.
- Acho que deves levar um desses – disse a velha, com um ar teatral que só não arrancou risos de Alain por se tratar de uma senhora de idade, provavelmente às portas da senilidade. Ela apontava para um baralho de tarô exposto na prateleira ao lado da mesa de consulta.
Quando estava prestes a declinar da oferta, Alain pensou melhor. Afinal, seria legal ter um troféu de lembrança da situação toda. Pegou o baralho e pagou à senhora. Antes de sair, ela arrancou-lhe mais alguns trocados em troca de um manual de como se fazer as previsões.
A noite foi de farra e diversão. Alain logo virou o centro das atenções com suas cartas e vaticínios, os quais ele fazia numa imitação muito boa de sotaque cigano, como visto nos filmes. Ao fim da festa, pegou um taxi em foi para casa.
Largou o baralho na mesa de cabeceira da cama e foi tomar banho. Quando voltou, preparava-se para dormir quando deixou o olhar recair sobre o baralho.
Lembrava-se disso agora e se dava conta do quão errada tinha sido a decisão que tomara a seguir. Será que tivera escolha? Afinal destino é destino.... Mas não, isso era loucura. As pessoas ao seu redor no metrô seguiam absortas em seus próprios problemas, inconscientes do que se passava com Alain. Ele tirou três cartas, e eram as mesmas que havia tirado no momento em que olhara para o baralho em sua mesa de cabeceira durante a madrugada.
A princípio aquilo mais o divertira do que assustara. Chegara a pensar que era “um final dramático para uma noite daquelas”. Então recolocara as cartas no baralho, embaralhou de qualquer maneira e tirou novamente três cartas aleatoriamente. Eram as mesmas.
“Ok, isso certamente é uma anomalia probabilística, ou algo assim, nada demais.” Mas seu coração já batia acelerado. Repôs as cartas, embaralhou, e retirou mais uma vez um trio, novamente as mesmas três cartas.
Devia estar louco, vendo coisas, aquilo devia ser efeito do álcool e das outras coisas que seus amigos usavam e que, através da fumaça, acabava compartilhando da viagem. Tentou se concentrar e retirou trẽs cartas novamente, e o trio reaparecia como das outras vezes. Tocou o baralho contra a parede e foi para a cozinha tomar um copo d'água para se acalmar.
Já recomposto, voltou para o quarto. Todas as cartas estavam espalhadas e viradas para cima, exceto três. A calma foi embora.
Recolheu suas coisas e foi para o metrô. O baralho, é claro, levara junto.
Agora olhava para as cartas em sua mão, pensando em quão absurdo aquilo tudo estava sendo. “Essas coisas não existem!”. As cartas, no entanto, teimavam em prever sempre a mesma coisa. Retirou trẽs cartas, já não se surpreendeu quando eram as mesmas, e as repôs atrás do baralho. Não embaralhou dessa vez, e retirou trẽs cartas de cima. Seu coração perdeu um compasso quando viu que eram as mesmas. Mas não as havia posto na parte final do baralho? Verificou, e não estavam lá, onde encontrou três outras cartas quaisquer. Isso era loucura. Devia estar ficando louco.
Olhava ao redor, e não encontrava solução no rosto de nenhum dos passageiros característicos que lhe acompanhavam no metrô àquela hora. Inconscientemente sabia que todos ali estavam ligados a ele pelas cartas. O drogado que estava jogado no banco da frente como um saco de bosta, o grupo de adolescentes querendo parecer adultos que tomavam energético misturado com alguma outra coisa fedorenta que não conseguia identificar, o mendicante que tinha sofrido um acidente de trabalho e que pedia por favor, por favor, um trocado qualquer, tenho família e ninguém quer dar trabalho para um velho necrosado como eu. Todos seguiam como se nada fosse acontecer, mas Alain sabia da verdade. As cartas não mentem.
Quando soou o freio e todos foram jogados para frente pela inércia, Alain deixou sem querer as cartas voarem de suas mãos. Enquanto todos gritavam e em algum lugar iniciava-se um incêndio por causa do choque entre os dois vagões que estavam, em um erro de cálculo, indo um contra o outro pelos mesmos trilhos, Alain via passar diante de seus olhos as três cartas que lhe perseguiam e cuja combinação significavam apenas uma coisa, uma coisa que no momento derradeiro tomou sua mente e o fez esquecer toda a balbúrdia ao redor:
A Morte.