terça-feira, 15 de março de 2016

Profecias e zonas de conforto

Uma noite, quando ainda estava em Groningen, estava praticando meu ritual noturno e tive uma surpresa. O ritual noturno consistia essencialmente de um último copo de leite e uma caminhada nos fundos da república com alguns amigos para jogar conversa fora. Nessa noite, especificamente, estávamos apenas eu e uma amiga, vizinha de porta. Contemplávamos as estrelas e as árvores, quando minha amiga me perguntou à queima roupa: "Marcus, qual é o teu emprego dos sonhos?".
A pergunta não foi o que me surpreendeu. À essa altura já estava acostumado com a não-trivialidade que uma conversa pode ter, e lá, ainda mais do que em outros momentos da minha vida, conversas não-triviais eram a norma, não a exceção. O que me surpreendeu foi a rapidez com que me decidi por uma resposta, e o quão verdadeira ela era.
Respondi que o emprego dos meus sonhos seria algo em que eu tivesse que me concentrar muito durante o dia, em um assunto de que eu goste, de forma a chegar em casa no fim da tarde com um cansaço bom; que tivesse tempo para ler alguma coisa, mas que tivesse sido produtivo o suficiente para não ter nenhum sentimento de culpa em fazê-lo; e que tivesse algum tempo para passar com meus amigos. Algo como pesquisador ou professor, em Matemática.
É claro que essa resposta não veio do nada. Sempre tinha no fundo da mente alguma coisa nesse formato, mas nunca tinha sido obrigado a dizer em voz alta, e em uma circunstância que exigisse tanta honestidade (uma conversa profunda entre amigos é algo muito mais sagrado do que um juramento no tribunal!).
Muita coisa aconteceu desde então. Passei 2015 inteiro com uma pulga proverbial atrás da orelha. Foi um ano difícil; eu sabia o que queria, sabia o que tinha que fazer a respeito, mas por conta de um zilhão de minhocas na minha cabeça também achava que deveria querer outra coisa, e que o que tinha que fazer a respeito era ir com a correnteza. Não vou fazer esse texto grande ainda maior contando os detalhes, basta saber que foi um ano difícil mas que agora sou oficialmente aluno do bacharelado em Matemática Pura na UFRGS.
O que me levou a vir no blog contar isso foi o impulso mais blogueiro que existe: queria contar meu dia. E daí a introdução se escreveu sozinha na minha mente. Às vezes a introdução fica maior do que o recheio, mas isso não é redação de vestibular então foda-se.
Acordei super cedo, em um horário pornográfico que não direi aqui porque este é um blog de respeito. Li no trem e no ônibus. Tive duas aulas, uma das quais está no limite, senão um pouco além, do que eu consigo acompanhar. Difícil, muito interessante, e o professor é fantástico. Depois almocei com alguns amigos, não tive nenhuma conversa trivial com eles (ou talvez alguma - o segredo não é eliminar as trivialidades, e sim não se conformar com elas). À tarde, estudei na biblioteca, porque tenho consciência de que em casa não estudaria nada. Li no ônibus e no trem na volta (no momento estou lendo Amor Sem Limites do Robert Heinlein, um dos Três Grandes da ficção científica), e cheguei em casa.
Quando estava no meio do meu atual ritual noturno, admirando as estrelas a partir do meu quintal e escutando os sons da cidade, me dei conta de como a minha rotina agora já se assemelha com a rotina que descrevi quando minha amiga me perguntou a respeito da profissão dos sonhos, lá em 2014. O dia foi produtivo, me sinto cansado mas de uma forma positiva, tive tempo pros amigos, estudei coisas que gosto, li bastante. E, olhando pro céu, ainda vi uma estrela cadente (o detalhe bloguístico que faltava para me convencer a escrever). Foi um dia bom. Têm sido dias bons.
É claro que nem tudo são flores. Não quero que isso seja mais um daqueles textos que as pessoas escrevem manifestando como suas vidas são perfeitas e blablabla, mais para convencer a si mesmos do que qualquer outra coisa. Não. Tem várias coisas acontecendo que não me agradam, as mesmas coisas que me trazem felicidade também eventualmente me trazem dores de cabeça. A vida é um sanduíche de merda, a gente tem o direito de escolher de qual sabor mas sempre tem uma merdinha. Dinheiro, por exemplo, não é algo que esteja fluindo lindamente, mas eu tenho o suficiente para mim e uma sorte do tamanho do mundo de ter uma mãe que me abastece com o que faltar. Queria deixar registrado esse momento de clareza, para talvez dar um empurrãozinho em mais alguém que tenha que tomar uma decisão difícil, mas principalmente para lembrar o futuro eu de que é bom ficar dentro da zona de conforto, mas ser grato pelas circunstâncias e estar em paz com suas escolhas e com as consequências de suas escolhas... isso é perfeito.