terça-feira, 30 de setembro de 2014

O Caso Fidélix

Na última semana o candidato à presidência Levy Fidélix me assombrou por dois motivos. O primeiro é que eu nunca imaginei que o cara do aerotrem fosse acabar sendo mais politicamente relevante do que, sei lá, o tio da carrocinha de cachorro quente. O segundo é o fato de que uma pessoa presumidamente educada, com acesso a bons livros e proeminente o suficiente dentro do próprio partido a ponto de ser escolhido como a melhor chance do partido de chegar à presidência, como uma pessoa assim consegue - apesar de tudo - continuar sendo um completo ignorante. Porque uma coisa é você ter a sua opinião, outra coisa é escolher por livre e espontânea vontade os piores argumentos possíveis para embasá-la.

Dando uma rápida vasculhada na internet (especialmente o Facebook), podemos encontrar facilmente alguns contra-argumentos que já desarmam o candidato:

1) tecnicamente, o pênis e a vagina também fazem parte do sistema excretor (ou tem alguém aí que faz xixi pelos poros do sovaco?);
2) levando em consideração o fato óbvio de que ele estava se referindo ao sexo anal, mesmo assim o que isso prova? Que pessoas do mesmo sexo não deveriam poder se casar porque não podem ter filhos? Tipo um casal tradicional em que o homem ou a mulher é estéril?
3) mesmo indo mais além, e considerando que o candidato pense que homossexualidade é questão de escolha e que é isso o que diferenciaria um casal homoafetivo que não pode gerar prole de um casal tradicional que não pode gerar prole (o primeiro "escolheu" ser gay e não ter filhos, enquanto que o segundo não escolheu ser estéril) o que diríamos então de um casal tradicional que escolhe não ter filhos, seja através de vasectomia ou do uso da camisinha? Eles não poderiam se casar?
4) qual a relação com o resto que o candidato viu eu não sei, mas ele também citou o fato de que o papa excomungou um padre pedófilo. E isso tem a ver com casamento homoafetivo porque sim.

Enfim, como eu disse, dá pra achar bem fácil contra-argumentos na internet, de forma que é difícil não interpretar a fala do candidato como uma tentativa desesperada de justificar o próprio preconceito irracional.

Agora, a parte em que a coisa toda fica difícil e que me deixa com uma pulga atrás de cada orelha: o que ele disse foi discurso de ódio? Ele deveria ser punido? Ou foi só uma coisa insanamente burra, foi um bom exemplo daquele ditado "é melhor ficar calado e parecer ignorante do que abrir a boca e acabar com as dúvidas"?

Para exemplificar os "lados" (se é que esse tipo de questão pode ser dita ter dois lados; topologicamente falando, não vejo razão para que não seja um objeto muito mais complexo), eu achei dois links interessantes.

O primeiro é o blog do Sakamoto, que raciocina de forma quase irresistível na direção de definir o que o Levy Fidélix fez como crime de discurso de ódio, e não mera liberdade de expressão. O feeling que o texto me passa é que está correto, mas parto do pressuposto de que eu sou uma pessoa flexível demais nesse caso, e como no passado li textos do Sakamoto que "esquerdaram" demais*, preferi ficar com um pé atrás.

Por causa desse pé atrás, vi o segundo link interessante. A coluna do Reinaldo Azevedo na Veja - ESPEEERA, não corre! Nem é tão ruim quanto parece, se você souber garimpar o que presta do que não presta. Por exemplo, logo no início ele já caga fora do penico dizendo que o Levy Fidélix fala menos besteiras do que a Luciana Genro e Eduardo Jorge, informação com a qual discordo totalmente. A Luciana Genro argumento muito bem muito obrigado e tem ideias que apesar de controversas fariam alguma diferença de verdade se ela fosse eleita. O Reinaldo pelo menos ganha uns pontos extras por usar a palavra "asnice" ao invés de "asneira", e isso por algum motivo me pareceu muito elegante.
Ele ter afirmado como verdade que Luciana Genro e Eduardo Jorge são piores candidatos do que o Levy Fidélix assim, de passagem, é só uma ferramente argumentativa de que o Schopenhauer (sério, não sou esnobe, não é a primeira vez que cito esse filósofo aqui e o motivo é simples: ele é um dos poucos que eu li) já falava no livrinho dele. Tu apresenta um conjunto de afirmações que o leitor vai aceitar, e no meio tu esconde algumas afirmações que o leitor poderia achar falsas. É grande a probabilidade de que o leitor no fim aceite o conjunto de afirmações e inadvertidamente aceite também as afirmações "escondidas". Isso tudo foi só um parênteses.

Na coluna do Reinaldo Azevedo, enfim, ele tece os próprios argumentos em favor de achar que o Levy é sim um idiota, mas não foi criminoso nas afirmações que fez. E quando eu li isso que percebi que era a pulga atrás da orelha que estava me incomodando. Façamos um exercício de empatia por um momento: digamos que você acredita de fato que homossexualidade é um problema, e que uma sociedade que a trata com naturalidade é, de alguma forma, menos desejável que uma sociedade que a repudia. Mas tudo o que você vê acontecer ao seu redor é que as pessoas estão cada vez mais tolerantes com esse comportamento (ou "com o comportamento dessa gente" como algum homofóbico enrustido sempre deixa escapar) e portanto sente que é seu dever como cidadão e candidato à presidência da república opor-se a isso. Não seria OK usar alguns argumentos falaciosos para convencer as pessoas? "Pelo bem maior"?

O que eu estou tentando dizer é que, se está tudo bem para o Eduardo Jorge dizer que deveria ser permitido a venda da maconha (quando, atualmente, é crime), e se está tudo bem para a Luciana Genro dizer que o aborto deveria ser permitido (quando, atualmente, é visto por muita gente como comparável ao assassinato), porque não estaria tudo bem para o Levy Fidélix dizer que acha que homossexualidade é doença e que não estimularia o casamento gay caso fosse (pausa para risos) eleito?

É uma questão complicada demais para que todo mundo fique fingindo que existe uma resposta óbvia. Tem gente muito inteligente dos dois lados da moeda, então algo errado tem.

A minha opinião, no momento, é a seguinte: quando alguém fala, pode ser obviamente simples liberdade de expressão, pode ser obviamente discurso de ódio, e pode ser algo entre os dois, que não é obviamente nada. O que o Levy Fidélix fez, pra mim, se encontra nessa última categoria, no limiar entre OK e não-OK. De forma que não vou assinar petição online para lhe cassar a candidatura, mas também não vou sair defendendo ardentemente a permanência dele na eleição.

Bom, era isso o que eu tinha pra dizer do assunto. Quero ressaltar, antes de me lançar na fogueira, que o que eu estou tentando "debater" aqui não é se o que o candidato disse estava certo ou errado, pois pra mim ele estava (muito) errado. O que não está claro para mim ainda, e por isso trago pra internet o questionamento, é até onde ele tem o direito de ter uma opinião de merda, basicamente, e a partir de qual ponto deveria ser considerado errado o que ele fez.

Aguardo retaliações!

Abraço!

* - essa coisa de esquerda/direita tem estado bastante presente nos meus pensamentos ultimamente. Como eu disse a respeito da questão da liberdade de expressão, não me parece que seja óbvio, ainda mais quando a esquerda tenta sempre reduzir a direita ao fascismo e a direita tenta sempre distorcer os feitos da esquerda (vide a coluna do Reinaldo Azevedo, que saiu atacando os candidatos de esquerda just because, quando o assunto não tinha a ver com isso). E também não entendo porque se insiste nesse pensamento de balaio, em que aceitando uma ideia a pessoa parece obrigada a aceitar todas. Não estudei o bastante do assunto ainda, é possível que no futuro eu venha a entender que existe alguma ideia que perspassa todas as outras e é por isso que elas andam juntas... mas até lá, sigo cético.