sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Espírito de Nero

Nesses dias ociosos de férias que, no geral, nada produzem de essencial para a humanidade, eu acabei me entregando a uma atividade digna de recém aposentados: cuidar do jardim. No meu caso, não foi bem do jardim, uma vez que nem temos um jardim propriamente dito. O que eu fiz foi tentar dar fim a alguns galhos secos que estão no pátio servindo de toca para ratos, baratas e outros monstros terríveis. Para isso, fiz uma mini churrasqueira com alguns tijolos perdidos e pus-me a tacar fogo em todos os galhos que me olhassem torto (nenhum me olhou, mas todos eram tortos, então...).
No meio de minha diversão pirotécnica minha mãe passou e fez graça para mim. Disse que eu tinha “espírito de Nero”, e foi embora para os afazeres dela. Achei graça, pois de fato eu estava sentindo prazer no crepitar e gemer da madeira morta, assim como supostamente Nero teria sentido ao ver o incêndio de Roma. Diz-se que na verdade Nero não foi responsável pelo fogo, afinal ele precisaria de muita vontade de reconstruir Roma a seu gosto, ou muito ódio pela raça humana e sua inconstância, ou ainda uma poderosa combinação dessas duas coisas; mas sobre o meu deleite em ver meus galhos queimarem não se tem dúvida.
Isso deve inclusive ser genético, porque meu pai também tinha gosto por fogueiras. Algumas vezes era só para se aquecer dentro de casa, com o fogo no forno a lenha, mas na maioria das vezes era uma versão ligeiramente maior da higienização que eu mesmo estava fazendo. Recordo que certa vez uma das vizinhas reclamou demais da fumaça, ia deixar fedendo as roupas do arame, estava difícil de respirar e coisa e tal. Meu pai ia lá e botava madeira verde no fogo, ninguém tinha que se meter nos seus assuntos incendiários. Mesmo meu pai tinha seus momentos incompreensíveis de crueldade gratuita (se bem que, tratando-se da minha vizinha, com certeza não era tão gratuito assim).
Vocês podem ficar tranqüilos, que eu não fiz o mesmo. Na verdade, antes de fazer o fogo avisei-a, para que tirasse a roupa do varal e tal. Ela inclusive me deu um pouco de cola de sapato – xodó do pessoal da esquina das antigas, quando o crack e o oxy ainda não eram famosos – para iniciar o fogo. Devo dizer que fiquei impressionado pelo impulso de prestatividade que isso significava para a vizinha, principalmente levando em conta os fatos do passado pelos quais julguei que a atitude do meu pai não tinha sido tão gratuita. (mas cuidado: cola de sapato não é apenas inflamável, ela praticamente explode!)
Eu estava lá, tranqüilo, pensando na vida como ela é, queimando alguns gravetos imaginando o que estaria passando pelas suas mentes enquanto queimavam, quando percebi que havia avisado apenas uma das vizinhas. Sabe como é, por uma dessas conclusões de Topologia Avançada, sabemos com certeza que numa vizinhança completamente ocupada tem-se – no mínimo – duas casas adjacentes à nossa, cujas moradoras são, por definição, chamadas de vizinhas. E elas quase sempre são chatas.
Uma eu avisei, tanto que me deu a cola e tudo o mais, a outra... Tinha acabado de pendurar suas roupas no varal. Depois daqueles microssegundos de pavor, em que o estômago cai cinco centímetros, se torce 15° no sentido horário e depois volta pra posição original torcido, pensei “azar do goleiro”. E continuei: “Essa vizinha sempre usa o forno a lenha dela quando minha mãe pendura roupas no varal, às vezes em dias que nem está frio! E a chaminé dela foi colocada de forma que é impossível não suspeitar que ela faça isso deliberadamente para que nossa roupa fique defumada.” Quando dei por mim, estava continuando o fogo, sem resquício de remorso ou vergonha. Tenho direito a alguns momentos de irracionalidade, suponho.
E não se preocupem também com a segurança. Cuidei para que fosse longe de qualquer palha que pudesse irromper em chamas com a proximidade, e que fosse pequena o suficiente para que não tivesse labaredas muito altas. A mangueira estava próxima, é claro, para qualquer eventualidade.
Arrisco-me a dizer, no entanto, que agora sei lidar com o fogo. Apesar de (o fogo) ser temperamental, ele ainda é mais compreensível que muita gente por aí, gente que faz coisas que até a Luiza, que voltou do Canadá, duvidaria. A gente pensa (eu, pelo menos, penso) que entendemos as pessoas, que sacamos as suas motivações e interesses, que fomos fundo na empatia e as compreendemos mesmo, até que em alguns momentos tu percebe que as pessoas vão lá e botam madeira verde para incomodar, como meu pai, ou as pessoas acendem o forno à lenha quando botamos as roupas no varal, como minha vizinha má, ou as pessoas fazem coisas impensadas e dolorosas, como algumas que não comentarei fizeram, e nesses momentos – especialmente por causa das últimas – eu entendo Nero.