Pegava o primeiro metrô
do dia para a casa da mãe, única solução em que conseguiu pensar
sendo um homem adulto e maduro, e continuava manejando incansável o baralho de
tarô, retirando cartas aleatoriamente e sempre
recebendo invariavelmente a mesma previsão.
Aquilo já tinha passado
dos limites, e tinha começado como uma simples brincadeira. Ele e
seus amigos estavam em uma dessas feiras itinerantes, que trazem para
a cidade tendas de reiki, cristais, massagem dos chakras, e todo tipo
de bobagem new age que se possa imaginar, e por provocação dos
amigos, que sabiam que Alain era um materialista convicto para quem o
sobrenatural era apenas um nome diferente para aquilo que não
entendemos ainda, decidiu ir na tenda do tarô e ver o que as cartas
lhe diriam.
O resultado ele já
esperava. A velha decrépita que lhe atendeu no interior escuro e com
o ar saturado de fumaça de incenso da tenda lhe tirou três cartas
que previam alguma merda genérica que teria sido uma boa previsão
para pelo menos 99% da população. “As cartas não mentem!”
disse ela, como ele tinha certeza que dizia para todos os seus
clientes. Pagou a consulta, satisfeito por não se ter deixado
enganar pela atmosfera do lugar, e já se virava para sair e contar a
experiẽncia para os amigos quando a velha lhe chamou, como se
tivesse lhe ocorrido de súbito uma ideia de última hora.
- Acho que deves levar um
desses – disse a velha, com um ar teatral que só não arrancou
risos de Alain por se tratar de uma senhora de idade, provavelmente
às portas da senilidade. Ela apontava para um baralho de tarô
exposto na prateleira ao lado da mesa de consulta.
Quando estava prestes a
declinar da oferta, Alain pensou melhor. Afinal, seria legal ter um
troféu de lembrança da situação toda. Pegou o baralho e pagou à
senhora. Antes de sair, ela arrancou-lhe mais alguns trocados em
troca de um manual de como se fazer as previsões.
A noite foi de farra e
diversão. Alain logo virou o centro das atenções com suas cartas e
vaticínios, os quais ele fazia numa imitação muito boa de sotaque
cigano, como visto nos filmes. Ao fim da festa, pegou um taxi em foi
para casa.
Largou o baralho na mesa
de cabeceira da cama e foi tomar banho. Quando voltou, preparava-se
para dormir quando deixou o olhar recair sobre o baralho.
Lembrava-se disso agora e
se dava conta do quão errada tinha sido a decisão que tomara a
seguir. Será que tivera escolha? Afinal destino é destino.... Mas
não, isso era loucura. As pessoas ao seu redor no metrô seguiam
absortas em seus próprios problemas, inconscientes do que se passava
com Alain. Ele tirou três cartas, e eram as mesmas que havia tirado
no momento em que olhara para o baralho em sua mesa de cabeceira
durante a madrugada.
A princípio aquilo mais o
divertira do que assustara. Chegara a pensar que era “um final
dramático para uma noite daquelas”. Então recolocara as cartas no
baralho, embaralhou de qualquer maneira e tirou novamente três
cartas aleatoriamente. Eram as mesmas.
“Ok, isso certamente é
uma anomalia probabilística, ou algo assim, nada demais.” Mas seu
coração já batia acelerado. Repôs as cartas, embaralhou, e
retirou mais uma vez um trio, novamente as mesmas três cartas.
Devia estar louco, vendo
coisas, aquilo devia ser efeito do álcool e das outras coisas que
seus amigos usavam e que, através da fumaça, acabava compartilhando
da viagem. Tentou se concentrar e retirou trẽs cartas novamente, e
o trio reaparecia como das outras vezes. Tocou o baralho contra a
parede e foi para a cozinha tomar um copo d'água para se acalmar.
Já recomposto, voltou
para o quarto. Todas as cartas estavam espalhadas e viradas para
cima, exceto três. A calma foi embora.
Recolheu suas coisas e foi
para o metrô. O baralho, é claro, levara junto.
Agora olhava para as
cartas em sua mão, pensando em quão absurdo aquilo tudo estava
sendo. “Essas coisas não existem!”. As cartas, no entanto,
teimavam em prever sempre a mesma coisa. Retirou trẽs cartas, já
não se surpreendeu quando eram as mesmas, e as repôs atrás do
baralho. Não embaralhou dessa vez, e retirou trẽs cartas de cima.
Seu coração perdeu um compasso quando viu que eram as mesmas. Mas
não as havia posto na parte final do baralho? Verificou, e não
estavam lá, onde encontrou três outras cartas quaisquer. Isso era
loucura. Devia estar ficando louco.
Olhava ao redor, e não
encontrava solução no rosto de nenhum dos passageiros
característicos que lhe acompanhavam no metrô àquela hora.
Inconscientemente sabia que todos ali estavam ligados a ele pelas
cartas. O drogado que estava jogado no banco da frente como um saco
de bosta, o grupo de adolescentes querendo parecer adultos que
tomavam energético misturado com alguma outra coisa fedorenta que
não conseguia identificar, o mendicante que tinha sofrido um
acidente de trabalho e que pedia por favor, por favor, um trocado
qualquer, tenho família e ninguém quer dar trabalho para um velho
necrosado como eu. Todos seguiam
como se nada fosse acontecer, mas Alain sabia da verdade. As cartas
não mentem.
Quando
soou o freio e todos foram jogados para frente pela inércia, Alain
deixou sem querer as cartas voarem de suas mãos. Enquanto todos
gritavam e em algum lugar iniciava-se um incêndio por causa do
choque entre os dois vagões que estavam, em um erro de cálculo,
indo um contra o outro pelos mesmos trilhos, Alain via passar diante
de seus olhos as três cartas que lhe perseguiam e cuja combinação
significavam apenas uma coisa, uma coisa que no momento derradeiro
tomou sua mente e o fez esquecer toda a balbúrdia ao redor:
A
Morte.
2 comentários:
Cara, esse conto é digno dessas antologias que o Frodo voltimeia organiza... Muito bom!
Ah, e não se preocupe, manterei minhas postagens aleatórias, esteja frustrado ou não, hehehe!
Abraço, maninho!
PS: por favor, desabilite essas letras para confirmação, odeio elas.
muito bom!!
acho que tu devia escrever ficção com mais frequência...
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