Mas então. Estava pensando no passado, quando saía com minha mãe e meu pai nos domingos, para ir nas cachoeiras de Dois Irmãos, cidade perto da minha. Essa lembrança é antiga o suficiente para ter aquelas névoas nos cantos, para não ser precisa e leal com a realidade, já que as memórias envelhecem com a gente, e mudam um pouco no processo. Acho muito interessante que essas lembranças, essas que guardamos de criança, sempre estão associadas com um sentimento. Como uma cor, ou um cheiro, que está presente na lembrança, mas ainda assim diferente, por que cor e cheiro se sentem com os olhos e com o nariz, e sentimentos... apenas se sentem. Por exemplo, quando meu pai andava na beira de uma cachoeira, enquanto eu e minha mãe olhávamos com admiração e ansiedade. Essa lembrança tem cheiro de “meu pai é herói”, cor de “amor protetor materno”. A placa que está logo atrás, onde está escrito “é bonito, mas é perigoso; cuidado com as corredeiras”, que com certeza tinha algum erro de português que na época me escapou, ainda conserva o sentimento de “vocês que se matem afogados, contanto que paguem a entrada antes de morrerem ou deixem a carteira à vista”. E assim por diante.
Como eu dizia, conforme o tempo passa as lembranças vão mudando. Aqui eu poderia dizer que elas mudam de “essência”, ou de “formato”, mas estaria mentindo se dissesse algo tão simples. Conforme o tempo passa, as lembranças continuam dizendo aquilo que diziam, mas não estão mais ali, como estavam antes, só sobrou o buraco que elas deixaram na mente, o encaixe como de uma chave. Só tem o formato antigo, e você preenche com os materiais da imaginação, abusando dos projetos das outras lembranças, menos alteradas.
Na tal lembrança, ainda, só lembro de um céu laranja, e de sentir que está logo na hora de ir para casa. De querer ir aonde meu pai estava, ao mesmo tempo que queria que ele saísse dali antes que escorregasse e me deixasse órfão de pai. Eu tinha muito medo disso, desde sempre fui dado a reflexões perigosas. Mas não aconteceu, na ocasião.
A lembrança do meu pai, um ser humano, não um cenário ou um episódio como com a cachoeira, é ainda mais estranha. Era um herói, como disse antes, honesto, correto, inteligente, engraçadíssimo quando queria, muito cricri, estressado como eu serei se não mudar, extremamente amoroso com a família, sempre presente. Quando ele estava junto de amigos, não mudava, tinha sempre o mesmo caráter, mas com os amigos ele se tornava tão... humano, sabe? Na época eu ainda não sabia que ele também era um ser humano. Tinha vaga idéia de que ele não sabia voar, nem conseguia puxar um Boeing 737 com os dentes, mas a sutileza da mente infantil não é passível de explicação, apesar dos esforços meus e de todos que sentem a necessidade de explicar o mundo.
E, além de pensar no passado, pensei também nisso que disse no parágrafo anterior, e nas idéias seguintes inevitáveis. Por que na época que meu pai era vivo eu era criança e minha mente hoje só mantém os alicerces morais daquele tempo, quase todo o resto já foi mudado. Se conservo ainda alguma noção residual que criei naqueles dias, conservo sem querer. Alguma coisa que meu pai ou minha mãe me disse naquele tempo que eu nem sequer cogitei não ser totalmente verdade, mas que se parar para pensar melhor não condiz com o resto que eu sei... entendem? Mas acho que esse tipo de memória eu quase não tenho mais, mas pelas suas próprias características, eu não saberia se tivesse.
E estou me desviando do assunto. Continuando, como dizia: além do passado, pensei também no que disse no parágrafo anterior (que, agora, é o anterior ao anterior). Por que como eu era diferente ao que sou hoje, talvez eu não esteja tão certo sobre como meu pai era. Me diziam que ele era inteligente, mas eu não era lá essas coisas de esperteza então, o que significa que pela perspectiva talvez meu pai não fosse tão inteligente como dizem. Memórias objetivas escasseiam, a respeito dele só tenho aquelas lembranças de que falei, como fendas de chaves.
O que dizem a respeito das memórias que temos dos entes queridos que morrem, é que quando conhecemos uma pessoa nós criamos um profile dessa pessoa na nossa cabeça, onde guardamos tudo que temos e sentimos em relação a ela; quando ela morre, não entendemos a morte totalmente. Afinal, a uma aceleração de 9,8m/s², em quanto tempo uma simples palavra, “morte”, teria energia suficiente para acabar com todo um dicionário de palavras que construímos sobre uma pessoa, todas elas dizendo que ela ainda vive? Pois é. A partir daí vem a noção de vida após a morte, a sensação de que a pessoa ainda está por aí, olhando por nós, de que ela não deixou de existir.
No dia em que tiraram a vida do meu pai em um assalto, iniciou-se em mim um processo que me distanciou cada vez mais daquilo que eu era. Mudei idéias, valores, mudei eu. Por causa daquele dia, não sei se hoje o que penso sobre meu pai condiz com a realidade, sei que não importa, pois sei que independente do que eu sei, ou não sei, ele foi um grande homem. Mas eu não tenho mesmo como saber, isso é uma questão em que a única posição possível mesmo é algo como o agnosticismo, o “saber que não tem como saber”, e saber que a única coisa boa que provém disso tudo é entender os próprios limites. Por mais que progredirmos, certas questões ficarão para sempre nos instigando a continuar a procurar a resposta, eternamente escondida. E são elas que importam de fato, são elas que nos mostram que as intempéries do mundo são coisas minúsculas, perto do resto.
E foi mais ou menos aí que eu parei de pensar, não por achar ter ido longe demais, mas por achar ter ido longe o suficiente para haver ainda mais mudança aqui dentro.
Um abraço!
5 comentários:
Bom, no final de tudo isso, eu nem sei o que dizer, fiquei meio que com medo até. Sabe, outro dia, antes de dormir, eu comecei a olhar fotos da minha infância e comecei a pensar e até escrevi uma história, e essa história se tratava basicamente de tudo o que tu falou ai, das lembranças que escapam da gente com o tempo, de como as coisas pareciam mais simples e perfeitas quando ainda érmas inocentes e o que a perda de pessoas fazem com a gente. Sério, fiquei muito emocionada aqui. >.< Juro que parece que tu fez uma analize mais que completa do que eu havia pensado. Disse tudo o que eu queria dizer. E com certeza, fez muito melhor do que eu teria feito. Beijos.
éramos*
-'. Acho que daqui mesmo. Postei no post anterior, e obrigada pela visita.
Beeeijoos
Meu pequeeeeeeeeno!
ausente sim... esquecer de vc, não!
:D
Nao sabia que tinha sido um assalto. =/
eu, até hoje, vejo meu pai como um herói. Um herói da vida real, entende? (me lembrei de Hancock agora, enfim)
Sei que ele é assim e mesmo que nao fosse, a realidade é minha e sou quem a crio, né?
então ele é heroi e ponto final.
beeeeijo nessa 'buxexinha' branca!
:D
Quando eu era menor (em idade, não vamos nos apegar ao lado físico) costumava ver meu pai não como um super herói mas como um daqueles personagens dos livros que não falam quase nada, mas estão sempre presentes, aqueles que sabem de tudo, sabe? Aqueles que podem passar um pouco desapercebidos mas são praticamente o alicerce da história.
Enfim, esse seu post me fez pensar e muito. Na verdade já li ele a um tempo, às vezes é necessário dar um tempo pra cabeça processar tudo e não sei, esse seu post mexeu em alguma coisa aqui dentro. Me vi pensando em momentos que aconteceram a anos atrás e eu nem lembrava, perdidos que estavam na minha mente, e não são momentos que eu gostei de esquecer. É estranho, mas quando vive esses momentos imaginei que jamais os esqueceria... mas esqueci.
"Era um herói, como disse antes, honesto, correto, inteligente, engraçadíssimo quando queria, muito cricri, estressado como eu serei se não mudar, extremamente amoroso com a família, sempre presente."
Mas me lembrou um certo garoto loiro de olhos verdes essa descrição, hein...
E quanto mais eu leio seus textos mais eu acho que tu tem que escrever mais. Está entendendo essa indireta totalmente direta?
Beijos (:
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