terça-feira, 15 de março de 2016

Profecias e zonas de conforto

Uma noite, quando ainda estava em Groningen, estava praticando meu ritual noturno e tive uma surpresa. O ritual noturno consistia essencialmente de um último copo de leite e uma caminhada nos fundos da república com alguns amigos para jogar conversa fora. Nessa noite, especificamente, estávamos apenas eu e uma amiga, vizinha de porta. Contemplávamos as estrelas e as árvores, quando minha amiga me perguntou à queima roupa: "Marcus, qual é o teu emprego dos sonhos?".
A pergunta não foi o que me surpreendeu. À essa altura já estava acostumado com a não-trivialidade que uma conversa pode ter, e lá, ainda mais do que em outros momentos da minha vida, conversas não-triviais eram a norma, não a exceção. O que me surpreendeu foi a rapidez com que me decidi por uma resposta, e o quão verdadeira ela era.
Respondi que o emprego dos meus sonhos seria algo em que eu tivesse que me concentrar muito durante o dia, em um assunto de que eu goste, de forma a chegar em casa no fim da tarde com um cansaço bom; que tivesse tempo para ler alguma coisa, mas que tivesse sido produtivo o suficiente para não ter nenhum sentimento de culpa em fazê-lo; e que tivesse algum tempo para passar com meus amigos. Algo como pesquisador ou professor, em Matemática.
É claro que essa resposta não veio do nada. Sempre tinha no fundo da mente alguma coisa nesse formato, mas nunca tinha sido obrigado a dizer em voz alta, e em uma circunstância que exigisse tanta honestidade (uma conversa profunda entre amigos é algo muito mais sagrado do que um juramento no tribunal!).
Muita coisa aconteceu desde então. Passei 2015 inteiro com uma pulga proverbial atrás da orelha. Foi um ano difícil; eu sabia o que queria, sabia o que tinha que fazer a respeito, mas por conta de um zilhão de minhocas na minha cabeça também achava que deveria querer outra coisa, e que o que tinha que fazer a respeito era ir com a correnteza. Não vou fazer esse texto grande ainda maior contando os detalhes, basta saber que foi um ano difícil mas que agora sou oficialmente aluno do bacharelado em Matemática Pura na UFRGS.
O que me levou a vir no blog contar isso foi o impulso mais blogueiro que existe: queria contar meu dia. E daí a introdução se escreveu sozinha na minha mente. Às vezes a introdução fica maior do que o recheio, mas isso não é redação de vestibular então foda-se.
Acordei super cedo, em um horário pornográfico que não direi aqui porque este é um blog de respeito. Li no trem e no ônibus. Tive duas aulas, uma das quais está no limite, senão um pouco além, do que eu consigo acompanhar. Difícil, muito interessante, e o professor é fantástico. Depois almocei com alguns amigos, não tive nenhuma conversa trivial com eles (ou talvez alguma - o segredo não é eliminar as trivialidades, e sim não se conformar com elas). À tarde, estudei na biblioteca, porque tenho consciência de que em casa não estudaria nada. Li no ônibus e no trem na volta (no momento estou lendo Amor Sem Limites do Robert Heinlein, um dos Três Grandes da ficção científica), e cheguei em casa.
Quando estava no meio do meu atual ritual noturno, admirando as estrelas a partir do meu quintal e escutando os sons da cidade, me dei conta de como a minha rotina agora já se assemelha com a rotina que descrevi quando minha amiga me perguntou a respeito da profissão dos sonhos, lá em 2014. O dia foi produtivo, me sinto cansado mas de uma forma positiva, tive tempo pros amigos, estudei coisas que gosto, li bastante. E, olhando pro céu, ainda vi uma estrela cadente (o detalhe bloguístico que faltava para me convencer a escrever). Foi um dia bom. Têm sido dias bons.
É claro que nem tudo são flores. Não quero que isso seja mais um daqueles textos que as pessoas escrevem manifestando como suas vidas são perfeitas e blablabla, mais para convencer a si mesmos do que qualquer outra coisa. Não. Tem várias coisas acontecendo que não me agradam, as mesmas coisas que me trazem felicidade também eventualmente me trazem dores de cabeça. A vida é um sanduíche de merda, a gente tem o direito de escolher de qual sabor mas sempre tem uma merdinha. Dinheiro, por exemplo, não é algo que esteja fluindo lindamente, mas eu tenho o suficiente para mim e uma sorte do tamanho do mundo de ter uma mãe que me abastece com o que faltar. Queria deixar registrado esse momento de clareza, para talvez dar um empurrãozinho em mais alguém que tenha que tomar uma decisão difícil, mas principalmente para lembrar o futuro eu de que é bom ficar dentro da zona de conforto, mas ser grato pelas circunstâncias e estar em paz com suas escolhas e com as consequências de suas escolhas... isso é perfeito.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Rick and Morty

Tem algumas coisas que eu gostaria de falar, mesmo que não tenha muita certeza de como estruturar os pensamentos em frases coesas e consistentes, daquele jeito que corretores de redação de vestibular gostam. Sorte minha que papel aceita tudo e na internet não é preciso se preocupar com esse tipo de cosmético; estamos todos sozinhos, cada um na sua subjetividade, e já que mesmo quando conseguimos produzir algo que é objetivamente bom em transmitir uma mensagem, mesmo quando nos expressamos claramente, mesmo nessas situações, os outros não nos compreendem bem, então não tem porque não escrevermos assim mesmo, sem coesão, sem consistência, e os corretores de redação de vestibular que se danem.
A primeira coisa é que eu recomendo fortemente a todos que assistam Rick and Morty. É uma mistura de Simpsons e Futurama, no sentido de que faz humor tanto com o cotidiano familiar quanto com ficção científica "pesada". Tem uma pitada bastante grande de O Guia do Mochileiro das Galáxias, aquele toque de absurdo, e por isso talvez não seja indicado para quem não curte - ou quem não entende. Tenho minhas dúvidas quanto a se esses dois grupos não sejam na verdade equivalentes.
É ficção científica pesada porque eles não tem medo de mexer com assuntos complicados (como estarmos em última análise sozinhos dentro da nossa mente). E, mais que isso, quando chegam a algum problema da trama (que a maior parte da ficção científica está fadada a ter, uma vez que é improvável uma história que seja completamente coesa sem ser verdadeira, caso em que a tal ficção perderia um pouco do seu caráter ficcional) como por exemplo algum paradoxo ou algo que qualquer um enxergaria como um grande furo, ou eles dão uma boa explicação ou simplesmente fazem piada com o assunto. Piada pode ser um golpe baixo, mas eu acho muito satisfatório quando eu percebo que os escritores de alguma coisa que eu gosto mostram explicitamente que "sim, nós pensamos nisso, próximo!" ao invés de ignorar o elefante na sala - como é feito em pelo menos um filme do Nicholas Cage, na maioria das histórias que trate de viagem no tempo, e naquele filme do Jackie Chan sobre universos paralelos que só de lembrar já me dá raiva. Raiva tipo frustração, de tu saber que tem algo errado e ainda assim não poder dizer nada - seja porque tu sabe exatamente qual é o problema mas é complicado demais fazer alguém entender ou porque tu não sabe qual é o problema, e nesse caso a frustração tem uma pontinha de frustração consigo mesmo.
Isso me acontece bastante em discussões polêmicas, das quais a internet está cheia. Me frustro quando eu não sei o que é que me parece errado, mesmo que tenha um sentimento muito forte de que há algo errado, mas também me frustro quando simplesmente não acredito que eu vá conseguir esclarecer o problema. A verdade imutável das discussões continua sendo que é dez vezes mais fácil falar uma bobagem do que explicar porque a bobagem é bobagem, ainda mais porque quem concorda com a bobagem não está num estado mental receptivo para deixar de concordar com a bobagem.
E não, não é questão de opinião, porque muitas vezes é um assunto que, no fim das contas, pode vir afetar a todos, não só indiretamente (quando, por exemplo, é um caso em que seria melhor viver em um lugar que menos pessoas falassem bobagem) como diretamente (como quando, por exemplo, se o candidato X for eleito ele vai fazer a Lei da Bobagem que vai afetar todo mundo, seja a pessoa pró-bobagem ou anti-bobagem).
Na minha família corre muito fortemente a crença de que religião, política e futebol não se discutem, e isso é uma regra que na prática pode até ter boas intenções, uma vez que na nossa família conseguimos brigar por muito menos, guardar rancores por décadas, etc., coisa de família tradicional brasileira, inadmitidamente disfuncional. Isso me incomoda porque no geral é eu que discordo, e vocês sabem como tribal shaming é uma merda. Prefiro engolir meus sapos e discretamente ficar quieto quando alguém falar uma bobagem (ah!, as bobagens) como por exemplo sobre o Stenio Garcia ter tirado foto pelado com a esposa. Aqui um link para o que eu penso sobre o assunto.
Eu ainda vou escrever mais sobre o assunto de discordância, de discussão na internet, de politização, de dissonância cognitiva, de como que eu acho que quase sempre posso estar errado e que infelizmente pouca gente parece ter a mesma impressão deles mesmos, isto é, quase ninguém assume que pode estar equivocado em algum ponto. Como o mundo seria melhor se menos gente assumisse de antemão que está certo. Mas, é claro, o mundo também seria melhor se o cobrador do ônibus parasse de pedir "mais uma passinho na porta, por gentileza" mesmo sabendo que o gargalo de produtividade do ônibus é a roleta, e não a fila, e nem por isso os trabalhadores do transporte público criam bom senso no assunto.
Ou seja, uma merda.
O que fica é que você deveria assistir Rick and Morty. Eles abordam várias questões sensíveis durante as duas temporadas que já foram ao ar, mas sempre dá para ver os dois lados da moeda, portanto os episódios não viram 20 minutos de proselitismo. Então ao mesmo tempo em que os personagens vão se perguntar se existe algum deus, lá pelas tantas (quando ameaçados de morrer não lembro como, mas digamos para fins de argumentação que fosse em um avião caindo) eles vão se ajoelhar e pedir perdão a Deus por terem sido tão arrogantes, e já que esse é com 99% de probabilidade o argumento favorito do pessoal pró-religião (e a razão de porque eu achar que essa discussão toda precisa urgente de um update), todo mundo sai agradado.
Como eu disse: falta de coesão e coerência (ou seria consistência?). Se perguntarem digam que essa foi a moral do texto.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O Caso Fidélix

Na última semana o candidato à presidência Levy Fidélix me assombrou por dois motivos. O primeiro é que eu nunca imaginei que o cara do aerotrem fosse acabar sendo mais politicamente relevante do que, sei lá, o tio da carrocinha de cachorro quente. O segundo é o fato de que uma pessoa presumidamente educada, com acesso a bons livros e proeminente o suficiente dentro do próprio partido a ponto de ser escolhido como a melhor chance do partido de chegar à presidência, como uma pessoa assim consegue - apesar de tudo - continuar sendo um completo ignorante. Porque uma coisa é você ter a sua opinião, outra coisa é escolher por livre e espontânea vontade os piores argumentos possíveis para embasá-la.

Dando uma rápida vasculhada na internet (especialmente o Facebook), podemos encontrar facilmente alguns contra-argumentos que já desarmam o candidato:

1) tecnicamente, o pênis e a vagina também fazem parte do sistema excretor (ou tem alguém aí que faz xixi pelos poros do sovaco?);
2) levando em consideração o fato óbvio de que ele estava se referindo ao sexo anal, mesmo assim o que isso prova? Que pessoas do mesmo sexo não deveriam poder se casar porque não podem ter filhos? Tipo um casal tradicional em que o homem ou a mulher é estéril?
3) mesmo indo mais além, e considerando que o candidato pense que homossexualidade é questão de escolha e que é isso o que diferenciaria um casal homoafetivo que não pode gerar prole de um casal tradicional que não pode gerar prole (o primeiro "escolheu" ser gay e não ter filhos, enquanto que o segundo não escolheu ser estéril) o que diríamos então de um casal tradicional que escolhe não ter filhos, seja através de vasectomia ou do uso da camisinha? Eles não poderiam se casar?
4) qual a relação com o resto que o candidato viu eu não sei, mas ele também citou o fato de que o papa excomungou um padre pedófilo. E isso tem a ver com casamento homoafetivo porque sim.

Enfim, como eu disse, dá pra achar bem fácil contra-argumentos na internet, de forma que é difícil não interpretar a fala do candidato como uma tentativa desesperada de justificar o próprio preconceito irracional.

Agora, a parte em que a coisa toda fica difícil e que me deixa com uma pulga atrás de cada orelha: o que ele disse foi discurso de ódio? Ele deveria ser punido? Ou foi só uma coisa insanamente burra, foi um bom exemplo daquele ditado "é melhor ficar calado e parecer ignorante do que abrir a boca e acabar com as dúvidas"?

Para exemplificar os "lados" (se é que esse tipo de questão pode ser dita ter dois lados; topologicamente falando, não vejo razão para que não seja um objeto muito mais complexo), eu achei dois links interessantes.

O primeiro é o blog do Sakamoto, que raciocina de forma quase irresistível na direção de definir o que o Levy Fidélix fez como crime de discurso de ódio, e não mera liberdade de expressão. O feeling que o texto me passa é que está correto, mas parto do pressuposto de que eu sou uma pessoa flexível demais nesse caso, e como no passado li textos do Sakamoto que "esquerdaram" demais*, preferi ficar com um pé atrás.

Por causa desse pé atrás, vi o segundo link interessante. A coluna do Reinaldo Azevedo na Veja - ESPEEERA, não corre! Nem é tão ruim quanto parece, se você souber garimpar o que presta do que não presta. Por exemplo, logo no início ele já caga fora do penico dizendo que o Levy Fidélix fala menos besteiras do que a Luciana Genro e Eduardo Jorge, informação com a qual discordo totalmente. A Luciana Genro argumento muito bem muito obrigado e tem ideias que apesar de controversas fariam alguma diferença de verdade se ela fosse eleita. O Reinaldo pelo menos ganha uns pontos extras por usar a palavra "asnice" ao invés de "asneira", e isso por algum motivo me pareceu muito elegante.
Ele ter afirmado como verdade que Luciana Genro e Eduardo Jorge são piores candidatos do que o Levy Fidélix assim, de passagem, é só uma ferramente argumentativa de que o Schopenhauer (sério, não sou esnobe, não é a primeira vez que cito esse filósofo aqui e o motivo é simples: ele é um dos poucos que eu li) já falava no livrinho dele. Tu apresenta um conjunto de afirmações que o leitor vai aceitar, e no meio tu esconde algumas afirmações que o leitor poderia achar falsas. É grande a probabilidade de que o leitor no fim aceite o conjunto de afirmações e inadvertidamente aceite também as afirmações "escondidas". Isso tudo foi só um parênteses.

Na coluna do Reinaldo Azevedo, enfim, ele tece os próprios argumentos em favor de achar que o Levy é sim um idiota, mas não foi criminoso nas afirmações que fez. E quando eu li isso que percebi que era a pulga atrás da orelha que estava me incomodando. Façamos um exercício de empatia por um momento: digamos que você acredita de fato que homossexualidade é um problema, e que uma sociedade que a trata com naturalidade é, de alguma forma, menos desejável que uma sociedade que a repudia. Mas tudo o que você vê acontecer ao seu redor é que as pessoas estão cada vez mais tolerantes com esse comportamento (ou "com o comportamento dessa gente" como algum homofóbico enrustido sempre deixa escapar) e portanto sente que é seu dever como cidadão e candidato à presidência da república opor-se a isso. Não seria OK usar alguns argumentos falaciosos para convencer as pessoas? "Pelo bem maior"?

O que eu estou tentando dizer é que, se está tudo bem para o Eduardo Jorge dizer que deveria ser permitido a venda da maconha (quando, atualmente, é crime), e se está tudo bem para a Luciana Genro dizer que o aborto deveria ser permitido (quando, atualmente, é visto por muita gente como comparável ao assassinato), porque não estaria tudo bem para o Levy Fidélix dizer que acha que homossexualidade é doença e que não estimularia o casamento gay caso fosse (pausa para risos) eleito?

É uma questão complicada demais para que todo mundo fique fingindo que existe uma resposta óbvia. Tem gente muito inteligente dos dois lados da moeda, então algo errado tem.

A minha opinião, no momento, é a seguinte: quando alguém fala, pode ser obviamente simples liberdade de expressão, pode ser obviamente discurso de ódio, e pode ser algo entre os dois, que não é obviamente nada. O que o Levy Fidélix fez, pra mim, se encontra nessa última categoria, no limiar entre OK e não-OK. De forma que não vou assinar petição online para lhe cassar a candidatura, mas também não vou sair defendendo ardentemente a permanência dele na eleição.

Bom, era isso o que eu tinha pra dizer do assunto. Quero ressaltar, antes de me lançar na fogueira, que o que eu estou tentando "debater" aqui não é se o que o candidato disse estava certo ou errado, pois pra mim ele estava (muito) errado. O que não está claro para mim ainda, e por isso trago pra internet o questionamento, é até onde ele tem o direito de ter uma opinião de merda, basicamente, e a partir de qual ponto deveria ser considerado errado o que ele fez.

Aguardo retaliações!

Abraço!

* - essa coisa de esquerda/direita tem estado bastante presente nos meus pensamentos ultimamente. Como eu disse a respeito da questão da liberdade de expressão, não me parece que seja óbvio, ainda mais quando a esquerda tenta sempre reduzir a direita ao fascismo e a direita tenta sempre distorcer os feitos da esquerda (vide a coluna do Reinaldo Azevedo, que saiu atacando os candidatos de esquerda just because, quando o assunto não tinha a ver com isso). E também não entendo porque se insiste nesse pensamento de balaio, em que aceitando uma ideia a pessoa parece obrigada a aceitar todas. Não estudei o bastante do assunto ainda, é possível que no futuro eu venha a entender que existe alguma ideia que perspassa todas as outras e é por isso que elas andam juntas... mas até lá, sigo cético.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Bricks and walls and stuff...

 A educação formal é o jeito que acabou se firmando como o correto para passar o conhecimento das gerações passadas para as gerações mais novas. Desbancou a conversa ao redor da fogueira e deixou as marcas nas paredes das cavernas no chinelo, em questão de eficiência e eficácia (sério, alguém aí sabe mesmo a diferença entre as duas coisas?).
E não é muito novo esse formato. Essa coisa de desde cedo mandarmos as crianças para a escola, onde elas terão que repetir várias vezes nossas pérolas da Verdade até que entendam ou, no mínimo, as conheçam suficientemente bem para que as papagaieiem (do verbo papagaiar) adiante, e onde além disso terão que respeitar o professor e assim aprender hierarquia, e respeitar os colegas e assim aprender civilidade, e conhecer os pontos cegos da escola e assim conhecer o mercado sexual paralelo da sociedade moderna, essas coisas que se aprende na escola, isso tudo era muito útil na época das indústrias, de bater cartão na entrada e na saída como o Coiote e o Papa-Léguas, de ser importante apenas até o ponto em que se ainda é lucrativo etc.

Não vou criticar o modelo. Tem um monte de gente criticando o Enem e entre eles alguns estão criticando o modelo. O que eu queria ressaltar é que ele é antigo.

E no tempo todo que o modelo esteve aí para se aperfeiçoar, surgiram algumas fórmulas prontas de como ensinar algumas coisas. Vocês conhecem bem algumas. Laranjas para aprender soma, pintar mapas para aprender Geografia, ligar três casas a três empresas de utilidades diferentes (sem cruzar as linhas!) para aprender sobre grafos não-planares, e por aí vai. Um muito legal, na minha opinião, é o que se usa para ensinar implicação lógica.
Nas aulas de lógica se aprende a aferir o valor lógico (verdadeiro ou falso) de uma proposição a partir das suas componentes e das formas como elas se relacionam. Assim, a proposição “o leitor está entediado OU o leitor está começando a ficar entediado” vai ter valor verdadeiro se qualquer uma das duas componentes for verdadeira – e eu tenho sifragol o bastante para admitir que provavelmente uma delas É verdadeira. Semelhantemente para a frase “o leitor não está entediado E o leitor não está ficando entediado”, que seria verdadeira se ambas as componentes fossem verdadeiras... e provavelmente não são. Não vou ser chato como o Lemony Snicket que vive dizendo para os leitores irem fazer outra coisa da vida, mas caso você queira, é um bom momento para pensar no assunto.
A operação lógica que é ensinada de uma forma memorável é a implicação lógica. “Se A então B” só é falsa quando A é verdadeiro e B é falso. Essa definição é árida e sem graça. Muito melhor quando contextualizada com política. O político candidato diz:

- Se eu for eleito, revolucionarei a educação!

Pois bem, agora fica mais fácil. Digamos que o candidato seja eleito. Se ele revolucionar a educação, tudo bem, cumpriu a promessa e, em termos lógicos, sua proposição de implicação foi verdadeira. Se ele não revolucionar a educação, daí então a proposição era falsa, e ele provou ser mais um político como os outros.
Agora digamos que ele não seja eleito. Se ele não revolucionar a educação, ninguém pode reclamar de nada, porque ele disse que iria fazê-lo caso fosse eleito, mas não prometeu nada para o caso em que não fosse eleito. Se ele revolucionar a educação mesmo não tendo sido eleito, também a proposição era verdadeira, ele não fez nada contrário ao que prometeu. É claro que tal cenário é extremamente improvável, e admito que ensinar implicação lógica talvez fique mais confuso se o professor botar um político que talvez cumpra sua promessa mesmo sem ter sido eleito.
Agora, digamos que o candidato queira ser mais persuasivo, quase ameaçador. Ele dirá:

- Revolucionarei a educação se e somente se eu for eleito!

Nesse caso, a implicação é dupla. Vale a ida e a volta. Ou seja: se ele não for eleito, necas de pitibiribas para a educação. Mas o público provavelmente não entenderia o que ele quis dizer. Imaginem! Usar vocabulário de demonstração matemática num palanque em que o mais recomendado é falar pausadamente, com palavras curtas e sem muitas ideias complexas, para que a massa possa se sentir acolhida e não se sentir muito alienada do que está acontecendo... Esse candidato, por ser político, certamente notaria o ar de perplexidade no semblante geral e se poria a explicar. Talvez demorasse algum tempo, uma meia hora, ia falar sobre Lógica, sobre os fundamentos da Matemática, sobre coisas que são, coisas que não são e coisas que são o não-ser, essas coisas. Alguns entre as pessoas da plateia talvez até gostassem e entendessem o que estivessem ouvindo, talvez aquilo fosse a fagulha que faltava para incendiar a curiosidade natural que todos temos, não que alguém fosse virar doutor por ouvi-lo falar sobre lógica, mas certamente iria encarar a vida de forma mais questionadora, querendo mais do que exemplos com laranjas e modelos medievais de ensino, talvez quisesse retornar para formas mais antigas e conversar ao redor da fogueira com os mais velhos, ou inventasse jeitos novos de aprender, quem sabe...
Isto é, o candidato estaria revolucionando o ensino. Mas ele nem havia sido eleito! Portanto sua proposição de implicação dupla é falsa, e ele estava mentindo.


Ou seja: não há esperança para alguns políticos.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Tarô

Pegava o primeiro metrô do dia para a casa da mãe, única solução em que conseguiu pensar sendo um homem adulto e maduro, e continuava manejando incansável o baralho de tarô, retirando cartas aleatoriamente e sempre recebendo invariavelmente a mesma previsão.
Aquilo já tinha passado dos limites, e tinha começado como uma simples brincadeira. Ele e seus amigos estavam em uma dessas feiras itinerantes, que trazem para a cidade tendas de reiki, cristais, massagem dos chakras, e todo tipo de bobagem new age que se possa imaginar, e por provocação dos amigos, que sabiam que Alain era um materialista convicto para quem o sobrenatural era apenas um nome diferente para aquilo que não entendemos ainda, decidiu ir na tenda do tarô e ver o que as cartas lhe diriam.
O resultado ele já esperava. A velha decrépita que lhe atendeu no interior escuro e com o ar saturado de fumaça de incenso da tenda lhe tirou três cartas que previam alguma merda genérica que teria sido uma boa previsão para pelo menos 99% da população. “As cartas não mentem!” disse ela, como ele tinha certeza que dizia para todos os seus clientes. Pagou a consulta, satisfeito por não se ter deixado enganar pela atmosfera do lugar, e já se virava para sair e contar a experiẽncia para os amigos quando a velha lhe chamou, como se tivesse lhe ocorrido de súbito uma ideia de última hora.
- Acho que deves levar um desses – disse a velha, com um ar teatral que só não arrancou risos de Alain por se tratar de uma senhora de idade, provavelmente às portas da senilidade. Ela apontava para um baralho de tarô exposto na prateleira ao lado da mesa de consulta.
Quando estava prestes a declinar da oferta, Alain pensou melhor. Afinal, seria legal ter um troféu de lembrança da situação toda. Pegou o baralho e pagou à senhora. Antes de sair, ela arrancou-lhe mais alguns trocados em troca de um manual de como se fazer as previsões.
A noite foi de farra e diversão. Alain logo virou o centro das atenções com suas cartas e vaticínios, os quais ele fazia numa imitação muito boa de sotaque cigano, como visto nos filmes. Ao fim da festa, pegou um taxi em foi para casa.
Largou o baralho na mesa de cabeceira da cama e foi tomar banho. Quando voltou, preparava-se para dormir quando deixou o olhar recair sobre o baralho.
Lembrava-se disso agora e se dava conta do quão errada tinha sido a decisão que tomara a seguir. Será que tivera escolha? Afinal destino é destino.... Mas não, isso era loucura. As pessoas ao seu redor no metrô seguiam absortas em seus próprios problemas, inconscientes do que se passava com Alain. Ele tirou três cartas, e eram as mesmas que havia tirado no momento em que olhara para o baralho em sua mesa de cabeceira durante a madrugada.
A princípio aquilo mais o divertira do que assustara. Chegara a pensar que era “um final dramático para uma noite daquelas”. Então recolocara as cartas no baralho, embaralhou de qualquer maneira e tirou novamente três cartas aleatoriamente. Eram as mesmas.
“Ok, isso certamente é uma anomalia probabilística, ou algo assim, nada demais.” Mas seu coração já batia acelerado. Repôs as cartas, embaralhou, e retirou mais uma vez um trio, novamente as mesmas três cartas.
Devia estar louco, vendo coisas, aquilo devia ser efeito do álcool e das outras coisas que seus amigos usavam e que, através da fumaça, acabava compartilhando da viagem. Tentou se concentrar e retirou trẽs cartas novamente, e o trio reaparecia como das outras vezes. Tocou o baralho contra a parede e foi para a cozinha tomar um copo d'água para se acalmar.
Já recomposto, voltou para o quarto. Todas as cartas estavam espalhadas e viradas para cima, exceto três. A calma foi embora.
Recolheu suas coisas e foi para o metrô. O baralho, é claro, levara junto.
Agora olhava para as cartas em sua mão, pensando em quão absurdo aquilo tudo estava sendo. “Essas coisas não existem!”. As cartas, no entanto, teimavam em prever sempre a mesma coisa. Retirou trẽs cartas, já não se surpreendeu quando eram as mesmas, e as repôs atrás do baralho. Não embaralhou dessa vez, e retirou trẽs cartas de cima. Seu coração perdeu um compasso quando viu que eram as mesmas. Mas não as havia posto na parte final do baralho? Verificou, e não estavam lá, onde encontrou três outras cartas quaisquer. Isso era loucura. Devia estar ficando louco.
Olhava ao redor, e não encontrava solução no rosto de nenhum dos passageiros característicos que lhe acompanhavam no metrô àquela hora. Inconscientemente sabia que todos ali estavam ligados a ele pelas cartas. O drogado que estava jogado no banco da frente como um saco de bosta, o grupo de adolescentes querendo parecer adultos que tomavam energético misturado com alguma outra coisa fedorenta que não conseguia identificar, o mendicante que tinha sofrido um acidente de trabalho e que pedia por favor, por favor, um trocado qualquer, tenho família e ninguém quer dar trabalho para um velho necrosado como eu. Todos seguiam como se nada fosse acontecer, mas Alain sabia da verdade. As cartas não mentem.
Quando soou o freio e todos foram jogados para frente pela inércia, Alain deixou sem querer as cartas voarem de suas mãos. Enquanto todos gritavam e em algum lugar iniciava-se um incêndio por causa do choque entre os dois vagões que estavam, em um erro de cálculo, indo um contra o outro pelos mesmos trilhos, Alain via passar diante de seus olhos as três cartas que lhe perseguiam e cuja combinação significavam apenas uma coisa, uma coisa que no momento derradeiro tomou sua mente e o fez esquecer toda a balbúrdia ao redor:
A Morte.